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As lágrimas que você me arrancou

  • Maria Beatriz dos Reis
  • 3 de jan. de 2018
  • 9 min de leitura

Duas em cada três universitárias brasileiras disseram já ter sofrido algum tipo de violência (sexual, psicológica, moral ou física) no ambiente universitário segundo dados da pesquisa “Violência contra a mulher no ambiente universitário”, do Instituto Avon, de 2015. Flávia Gândara Simão, em suas pouco mais de duas décadas vividas, já faz parte dessa estatística.

Para primeira edição da Revista FOCUS, a Flávia escreveu um depoimento contando sobre como foi sobreviver aos quatro anos e meio de um relacionamento abusivo. Aqui, no site da Revista, você encontra o relato completo e mais fotos do ensaio com ela.

"Eu queria vomitar tudo em cima de você agora porque esses dias te lembrei com carinho. Achei que eu tivesse chegado perto do perdão que ia embrulhar e te mandar pela caixa do correio, mas eu nem sei mais qual é o seu endereço. Você tem uma família agora e eu não me sinto à vontade em continuar com uma parte de mim tomada por toda a vida que você me arrancou. E que grande ironia! Mas, as vezes, tua cara vem e bate de frente com o breu que me embala o sono e o meu estômago dá um nó e ameaça a jogar tudo pra fora como há dois anos e meio. Você lembra? Era o restaurante chique que sua família frequentava, aquele que você me levou. Você tava segurando minha mão pra depois me apunhalar com palavras que até hoje me assombram a mente em dias que eu apenas queria que fossem calmos na cidade pequena ou na selva de pedra. Você tava matando todas as células existentes em mim e que almejavam sobreviver depois que aquela tarde de chuva passasse. Eu já tinha sobrevivido tantos anos, mas talvez eu estivesse tão morta por dentro que não sentia o fedor exalando de nós a cada nova alvorada. Você queria me proibir de chorar. você queria me proibir de vomitar. ‘Puta não tem voz. Vagabunda fica quieta’. E eu tava perdida naquele mar de gente de pedra e o restaurante era chique, né eu não podia dar vexame. O que iam pensar do bom moço que dá gorjeta pro garçom depois de arrancar 6 kg de estômago direto da minha entranha? ‘Flávia, você tá muito magra’, ‘Flávia, você precisa engordar’, ‘Flávia, eu to preocupada com você’, me diziam. ‘Espera, é rapidinho, não vou levantar agora.’ Depois do almoço é sempre assim, eu preciso ficar aqui sentada mais uns 10 minutos esperando o enjoo passar. Mas ele passa. Já já tá tudo bem de novo’. Já já eu recuperava minha força e neutralizava minha gastrite emocional pra você conseguir arrancar com seu canivete bonito, aquele que você ganhou de presente, todas as minhas tripas que se dilaceravam por entre a manipulação que você tinha a capacidade de fazer com a minha cabeça. 2190 dias e ainda não entendi que monstro é que te engoliu e te cuspiu com aquelas calças descoladas. 2190 dias e eu ainda tenho que lidar com todo o chorume que você vomitou pra dentro das minhas roupas coloridas. Aquelas que você adorava tirar todos os dias. E como eu ia negar se você aceitou ficar comigo depois de todos os anos que eu me humilhei pra mim e pra quem mais quisesse [ou não] ver? Eu lembro que me diziam que quem acredita sempre alcança. Eu sorria por fora. Por fora. Porque, por dentro, eu tinha que engolir a minha dor e levar sal na bolsa pra caso eu desmaiasse. ‘Só preciso tomar cuidado pro segurança da balada não pensar que é cocaína, porque, senão, eu acho que vou morrer e aí fico apavorada e sinto que vou desmaiar, mas aí eu lembro que é só pânico e a consulta do psiquiatra é daqui 20 dias. Tudo bem. Ele me deixou uma receita azul. Tudo bem, porque ele diz que um dia eu vou me encontrar. E tudo o que você roubou de mim eu vou devolver no lugar’. Você contabilizou as 180 meninas quando disse na minha cara que me traiu? Você teve todo esse cuidado comigo? E os telefonemas suicidas que me faziam colocar despertador de 1 em 1 hora durante toda a madrugada com medo de que eu encontrasse uma mensagem dizendo que foi bom estar comigo? Afinal, eu sabia o tempo exato pra tirar sua comida do micro-ondas, senão o céu da sua boca doía, ‘mas adeus’. A minha boca doía todo dia quando eu dizia que te amava e esquecia quem eu era pra poder te salvar. Mas eu sei bem que a hora que você se salvou. Foi no nosso primeiro mês de namoro, lembra? Quando sua mãe, sem querer, deve ter pegado sua camisinha por engano daquele lugar escondido dentro da sua escrivaninha. Mas pelo menos dessa vez teve camisinha. Menino precavido, traição com segurança. Da primeira vez. E as outras 179? ‘Te traí com 180 meninas, quer me dar um soco na cara agora ou depois?’ E ainda pensei em não acertar na cara pra não te estragar o enterro. A minha cabeça tá latejando e eu to tremendo. Estranho que não tá tanto frio por aqui. Fria tava eu inteira, e seca, junto com todas as lágrimas que você me arrancou com aquele buquê de flores no nosso aniversário de quatro meses. ‘Flávia, por quê você tá chorando? Como assim ele terminou com você? Ele mandou eu te comprar um buquê de flores pro dia de hoje’. Opa, acho que você confundiu as datas. Talvez, essas flores você quisesse mandar em forma de coroa pra ocupar a cabeça da princesa que você dizia que eu era na sua vida e me entregar no dia do meu enterro, lembra, aquele 6 de julho de 2011, quando matei a minha vida em troca da tua? ‘Eu sou um monstro, fiz tudo milimetricamente calculado’. Obrigada pela justificativa. E mesmo assim ainda me ama? ‘Eu também te amo, me perdoa. Eu tô enjoada, eu tô tremendo. Vou, sim, fumar um baseado pra ficar mais calma’. era só isso que eu precisava mesmo, você sempre tinha razão. Me perdoa por questionar o seu discernimento. Me perdoa por gastar 400 reais todo mês pra te ver. Mas me perdoa, também, por te propor dividir as visitas. Me perdoa por aquele dia que tinha um cara me seguindo na rua de madrugada, aquele dia que você não quis me buscar a 5 quadras da sua casa porque não tava afim e eu cheguei chorando, desesperada. Me perdoa por ter te feito me dar uma bronca e por me achar louca. Me perdoa por todas as meninas que te impedi de se relacionar enquanto você tava de mão dada comigo. Na verdade, me perdoa mesmo porque não consegui fazer nosso relacionamento ser suficiente e te brecar uma traição. Opa, esqueci. Uma só não. Me perdoa por todos os dias, até quando eu não queria, te abrir as pernas achando que isso fosse te fazer ficar do meu lado. Me perdoa por não entregar os trabalhos da faculdade quando você ficava 3 horas brigando comigo porque eu coloquei um ponto final e não dois depois do eu te amo naquela mensagem às 3h da manhã. ‘O que eu tô fazendo acordada às 3h da manhã? Nada, amor, só acordei pra ver se você tinha mandado msg mesmo’. Me perdoa por não largar a faculdade no meio do curso e ir morar com você em São Paulo. Me perdoa por você ter a ideia de mudar pra Marília pra ficar mais perto de mim e sentir a tentação de me trair com muitas mulheres da universidade. Mas tudo bem, é “instinto animal” como você dizia, não é? Me perdoa por aquele dia que eu vomitei no mato e que você teve que segurar meu cabelo. É que você tava acabando comigo e minha janta decidiu sair junto com as minhas tripas. Então me perdoa, mas alivia pro meu lado, por favor. Me perdoa por você estar cansado de ouvir a palavra desculpa. Me perdoa por eu mudar a palavra pra ‘perdão’. Me perdoa por fazer amizade com teus amigos e você ter que mentir pra eles falando que a gente tinha um relacionamento aberto pra você ficar com quem quisesse sem ninguém te encher o saco. Me perdoa também por estar na sua casa aquele dia que você surtou e aquele outro dia que você surtou e aquele outro dia. Me perdoa por ter ficado com aquele cara um ano antes de a gente namorar e me perdoa mais ainda por você ter olhado pra ele, sei que saber disso te fez chorar muito e destruir todo o role que estávamos, mas me perdoa. Me perdoa por todas as vezes que eu tava com você e seus amigos lembravam os lugares exatos, no ambiente que a gente tava, que você tinha ficado e usado várias mulheres lá. Sei que a gente já discutiu muito sobre isso, mas me perdoa mais uma vez. Me perdoa por eu ter alergia e minha orelha não suportar o brinco caro que você me deu quando me pediu em namoro. Mas tudo bem, pelo menos aliança era só eu que tinha, né? Ainda mais algo pra dar a entender que você namora? Não, não no seu corpo. Me perdoa por ter que desafiar meu pai, toda madrugada, por sua causa. Ah, eu só tinha 16 anos, mas me perdoa, eu era jovem. Me perdoa por eu ser jovem. Você tinha 17, mas sei que sua alma era mais velha. Me perdoa por dizer mais velha e por não dizer ‘com um nível maior de experiência’. Me perdoa por nao entender nada do que você dizia em quase todas as suas mensagens e ter que mostrar elas pras minhas amigas pra elas decifrarem se você tava falando que me amava ou que me odiava. Me perdoa por aquele festival que você me convidou pra ir e que parou de responder minhas mensagens quando eu já tava lá. É que, no dia seguinte, eu vi foto sua com outra menina que também te amava lá no festival. Vocês tavam na roda gigante, tão felizes, diziam frases de amor. Eu fiquei chateada. Mas me perdoa por ficar chateada. Me perdoa por aquela brincadeira que você foi obrigado a inventar pra amenizar a minha dor. Aquela que a gente ria por eu ser sempre a terceira da sua noite. Me perdoa por você ter que usar sua criatividade para algo que amenizasse a minha dor. Eu deveria me contentar em ser a quarta, né? ‘Não, tudo bem, eu sei que sou especial’. Me perdoa por eu não lembrar de todas as vezes que você me fez ter medo de ficar sozinha porque eu tinha medo de surtar. Me perdoa por eu ter medo de quando o pôr do sol chegava e eu sabia que tudo ia ficar escuro e que a noite tava vindo e que isso era horrível e eu tinha que estar com gente perto pra conseguir ficar bem. Me perdoa por todos os dias que eu briguei com você quando você dirigia bêbado, a 150 km por hora porque eu não tava afim de morrer. Ou talvez eu estivesse um pouco. Me desculpa todas as msgs que eu te mandei perguntando se você tava vivo. ‘Eu juro que eu não queria de forma alguma te incomodar’. Me perdoa por você não gostar da minha voz. ‘Acha, amor, eu nem sinto mais vontade de cantar’. Me perdoa também por gostar de escrever e me atrever a fazer tão bem algo que você gosta e faz também. Mas tudo bem, eu já parei de escrever mesmo. Me perdoa por dançar nas festas com as minhas amigas, naqueles lugares em que você conhecia todo mundo, mas preferia ficar com cara de merda do meu lado. Me desculpa também por não querer colocar saia curta naquela sexta a noite e não querer me mostrar como a mulher gostosa com a qual você desfilava na rua. Me perdoa por minha conversa ser chata e te fazer dormir durante várias das nossas ligações. Me perdoa por ser a pessoa que te deu banho quando você sofreu acidente com outra menina, enquanto tava comigo na mesma manhã. Você lembra desse dia? Eu fiquei meio triste esse dia. É que lá no hospital mesmo, quando eu revezava o horário de visita com seus pais, você quase nem conseguia ficar acordado por causa daquele misto de remédios e aquela pancada que te fez ir pra UTI, mas mesmo assim você tinha força pra me falar de como a noite de pizza e vinho foi boa com ela. E insinuava tantas coisas que, quando eu fiquei sabendo por ela mesma que quase nada do que você contou era verdade, a minha tristeza já tinha passado e eu tinha fôlego pra cuidar de você, te dar banho, te alimentar, enquanto sua mãe trabalhava. O ar só desistiu de entrar no meu peito quando chegou aquela menina. Sabe aquela que, durante o nosso namoro, eu vi a conversa de vocês, lembrando como eram bons os tempos que vocês se amassavam na sala da casa dela e combinando novos rolês parecidos? Me perdoa por eu ter visto o carinho no pé que ela te fazia e ver você retribuir enquanto era eu que tava em pé no batente da sua porta esperando o horário pra te levar remédio. Me perdoa por eu ser louca e ter a audácia de pedir um pouco de respeito, é que, dessa vez, eu achei que merecia. ‘Não, mas eu já parei, eu sei que você me ama e sei que é muito grato a mim por eu estar aqui com você nesse momento difícil’. Me perdoa por todas as discussões que pareciam que tinham sumido da minha cabeça quando a gente acordava. E me perdoa também por eu ter uma válvula de escape para não enlouquecer mais do que você já fazia eu achar que era. Me perdoa por ter mudado de casa e ter apagado a declaração que você fez na minha parede, aquela que você dizia que eu era tudo pra você, lembra? Sim, a declaração do 907. Ah.. é que naquela outra você também disse, é verdade! E naquela outra também. E naquela e naquela. Nossa, eu acho que acreditei. Me perdoa por eu ter acreditado em você. Eu to me perdoando também. Mas as vezes tua cara vem e bate de frente com o breu que me embala o sono e o meu estômago dá um nó e ameaça a jogar tudo pra fora. E eu queria vomitar tudo em cima de você agora. Porque esses dias te lembrei com carinho."

 
 
 

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